Uma rápida passagem pelo perfil do Fogo Cruzado no Instagram e uma constatação é feita: nas fotos de vítimas de violência armada, a maioria esmagadora é negra.
Esse recorte racial independe de local. Em todas as regiões metropolitanas em que atuamos, seja Bahia, Rio de Janeiro ou Pernambuco, os mortos a tiros são rotineiramente pessoas negras. Acabamos de chegar no Pará e não imagino que o cenário seja tão diferente.
A formação social brasileira relegou a população negra à margem da sociedade. Não é por acaso, portanto, que a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 3 vezes maior do que a chance de uma pessoa branca. Este é um dado do Atlas da Violência e não é nada fácil produzir uma informação como essa.
O nosso trabalho de mapear a violência armada nas regiões metropolitanas do Brasil tem um grave empecilho: sabemos a raça de pouquíssimas vítimas. Apesar de negros serem os alvos mais constantes, o perfil racial da vítima não interessa quando os casos vão para os registros médicos e policiais. O que acaba acontecendo é que ficamos com uma imensa lacuna. As pessoas vitimadas pela violência são apagadas mais uma vez, no campo simbólico, quando no registro de óbito a raça é “não identificada”.
Em 2023, foi possível identificar a raça de apenas 43% das vítimas de tiro - destes, 71% eram negros. Em números fica mais claro: 603 dos baleados eram negros, outros 960 não foram identificados pois não houve qualquer informação — deste último, é possível que a maioria também seja negra.
Em Salvador e região metropolitana, 94% dos baleados que tiveram a raça identificada eram negros (535). Outros 63,6% (992) baleados não tiveram raça identificada.
O abismo estatístico mais grave é o do Rio de Janeiro. Em uma cidade também marcadamente negra, como as duas anteriores, 1.375 pessoas baleadas não foram identificadas. Não há nenhuma informação sobre quem elas eram. Isso significa que 8 em cada 10 vítimas de tiros não têm raça divulgada. Entre as vítimas com raça identificada, 48% eram negros. No Rio, 51,7% da população é negra.
Venho repetindo há um tempo que a segurança pública no Brasil é tratada com negacionismo. A estratégia é batida: governos passam e não investem na produção e, principalmente, na transparência dos dados. Quando confrontados por dados de institutos como o Fogo Cruzado, o maior banco de dados abertos sobre violência armada da América Latina, a tática é questionar a fonte dos dados, mas sem apontar nada. Questionam por questionar
A violência armada brasileira é um escândalo. A violência armada brasileira matar tantas pessoas negras é outro escândalo. O terceiro e derradeiro escândalo é não haver políticas públicas eficientes para tirar essa população da linha de tiro. Não podemos esperar que o extermínio seja resolvido pelas próximas gerações. Tem gente morrendo agora. Cobrar políticas públicas é urgente
Cecília Olliveira
Diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado.
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